As transferências
intergovernamentais desempenham um papel de destaque na área de saúde no
Brasil. Desde a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), concebido a partir da
Constituição de 1988, a descentralização fiscal e administrativa, além da
redistribuição dos recursos entre as regiões brasileiras, são aspectos que vêm
sendo desenvolvidos.
Visando garantir
universalidade, equidade e integralidade na assistência à saúde, e sob a ótica
de que os governos locais têm mais condições de identificar necessidades
específicas, o SUS tornou os municípios os principais responsáveis pela gestão
da saúde de sua população, na teoria. No que se refere ao financiamento, a legislação
exige que recursos das três esferas de governo sejam necessariamente aplicados
na área da saúde. Assim, para que sejam geridos pelos governos municipais e
para que haja uma redistribuição ao longo do território, os recursos são
destinados a fundos e transferidos aos estados e municípios.
A maior parte das
transferências realizadas através do SUS estão inseridas nas modalidades
conhecidas como “fundo a fundo” e são obrigatórias e condicionais. Isso
significa que elas são realizadas de forma automática e compulsória e devem,
necessariamente, ser aplicadas em fins específicos na área da saúde.
Diversos e muitos são os problemas do SUS.
Contudo, dois deles precisam ser pensados em razão dos graves males que causam
à gestão do SUS. São dois problemas que se interligam. Um deles é a
transferência de recursos da União para Estados e Municípios e o outro, a
posição do STF de que todos os entes federativos são solidários na prestação de
serviços de saúde à população, independentemente de seu porte demográfico e
econômico.
O primeiro deles, o da transferência de
recursos da União para os Estados e Municípios, é o entendimento do STF de que
recursos federais, mesmo quando repassados a estados e município, continuam
federais e devem ser fiscalizados pela esfera federal – controle interno, a
Controladoria da União (atual Ministério da Transparência) e a auditoria do SUS
– e o controle externo, o Tribunal de Contas da União (TCU). Isso significa
dizer que repassados os recursos, esses recursos continuam federais e devem ser
fiscalizados pela União. Eles não integram os recursos dos entes federativos
recebedores, e por isso, não devem ser fiscalizados pelos seus sistemas de
controle interno e externo.
Associando esse fato – controle federal – com
as determinações do Ministério da Saúde no uso do dinheiro transferido, sempre
sob a forma de incentivos a programas federais, ou seja, por adesão a esse ou
aquele programa, os gestores do SUS passam a ter que cumprir as determinações
federais sem a possibilidade de poder gerir seu plano de saúde, fruto de
discussão e aprovação do conselho de saúde e que deve ser o espelho das
necessidades de saúde do município ou da região ou do estado.
Essa forma de repasse de recursos e a decisão
de que o recurso federal não perde sua coloração quando adentra o orçamento
estadual ou municipal mitiga a autonomia do gestor da saúde na condução do seu
sistema, de acordo com o planejamento local, regional e estadual. A definição,
nos mínimos detalhes, do gasto dos recursos federais da saúde transforma o SUS
num grande convênio, ferindo o planejamento ascendente ou integrado, uma vez
que as determinações são prévias ao planejamento; serão elas que irão definir o
planejamento da saúde no nível estadual e municipal.
E passa-se a controlar o gasto da saúde
minuciosamente, não de acordo com o plano de saúde – base de todas as despesas
de saúde de acordo com a lei – mas sim de acordo com o definido nas portarias
que dispõem sobre os incentivos a este ou aquele programa.
O segundo ponto – a solidariedade dos entes
federativos na prestação dos serviços de saúde – é outro problema grave, diante
da grande diversidade demográfica, econômica do nosso país. Estima-se que 70% dos municípios brasileiros
têm menos de 20 mil habitantes. E o nosso sistema de saúde é um sistema
hierarquizado em termos de complexidade de serviços, cabendo a determinados
entes federativos a prestação de serviços de maior ou menor complexidade, sendo
impossível pensar em um sistema de saúde que imponha a todos os entes
federativos – 5.564 municípios e 27 estados – uma igualdade de prestação de
serviços. Seria um arrematado absurdo pensar num sistema de igualdade de
responsabilidades e obrigações, quando os mesmos são totalmente diferenciados
em população, renda, desenvolvimento econômico etc. e na própria
responsabilidade com a prestação de serviços.
São problemas que afetam o centro do sistema
de saúde que é o seu financiamento e a sua gestão. Podemos falar em um sistema
descentralizado, com competências próprias dos entes federativos se grande
parte do recurso que o financiam são considerados federais, com definição de
sua aplicação pela esfera federal?
Assim, em uma realidade em que a grande
maioria dos municípios tem a prestação do serviço de saúde financiada pelo
repasse de fundos federais, outro ponto importante é o tamanho do impacto nos
orçamentos municipais com a implementação da PEC 55 e o teto de gastos para os
recursos federais com a saúde, apesar da proteção das transferências constitucionais. Não só um investimento de melhor qualidade na
saúde é necessário, mas também, uma gestão mais eficiente desses recursos.
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