segunda-feira, 10 de outubro de 2016

O papel e a importância do tributo no Estado Contemporâneo

O contínuo processo evolutivo do Estado promoveu uma profunda transformação no campo do fenômeno tributário. Essa mudança ocorreu, principalmente, devido a cisão entre a propriedade e o Estado, resultado das revoluções econômica e política que despontaram na França e Inglaterra[1].
Com o advento do Estado Contemporâneo, o governo passou a depender financeiramente da cobrança de tributos e a tributação deixou de ser simplesmente uma relação de poder da autoridade soberana que a estabelecia.
Ademais, o intervencionismo estatal, marcado pela experiência socialista da Revolução Russa de 1917, renovou o debate acerca da finalidade do Estado e do desempenho da função social a ele atribuída, demandando a promoção de direitos sociais e a distribuição equitativa de bens.
Posteriormente, as experiências vividas no pós-guerra impulsionaram a redefinição do Estado Social, consagrando políticas de redistribuição de renda, à luz da perspectiva constitucionalista e do projeto democrático.
Desse modo, a atividade tributária, na sua concepção atual, tornou-se tanto instrumento estatal de arrecadação de receitas para o custeio dos gastos públicos, quanto mecanismo de promoção de direitos constitucionalmente consagrados. É nesse sentido que Liam Murphy e Thomas Nagel iniciam seu livro “O mito da propriedade”:

Numa economia capitalista, os impostos não são um simples método de pagamento pelos serviços públicos e governamentais: são também o instrumento mais importante por meio do qual o sistema político põe em prática uma determinada concepção de justiça econômica ou distributiva.[2]

Sob essa perspectiva, a doutrina desenvolveu a ideia de fiscalidade e extrafiscalidade para representar as finalidades do tributo.
O tributo apresenta função fiscal quando sua intenção é essencialmente arrecadatória, visando tão somente à captação de recursos para os cofres públicos. A função fiscal do tributo é responsável pelo financiamento e manutenção da atividade estatal. É por meio da arrecadação de receita que o Estado obtém o suporte financeiro adequado para a sua sobrevivência e para a implementação de políticas públicas destinadas à satisfação das necessidades coletivas dos membros daquela comunidade.
A finalidade extrafiscal, por sua vez, pode se apresentar tanto no âmbito regulatório, quando o tributo busca intervir em determinas situações ─ sociais, políticas ou econômicas ─ para corrigir externalidades, estimulando ou desestimulando certos comportamentos, como também pode se revelar como “instrumento de política fiscal efetivamente transformador da realidade social”[3], isto é, a tributação torna-se mecanismo fundamental na formulação de políticas públicas adequadas ao enfrentamento das desigualdades existentes na sociedade[4].
A justiça fiscal, portanto, só é garantida se a intervenção estatal coexistir com uma política de gastos públicos de caráter social, devendo haver correspondência entre os recursos arrecadados, as despesas realizadas e o esforço tributário realizado pelos contribuintes, o que assegura a própria legitimidade do Estado Social[5], cuja concepção repercute no constitucionalismo democrático contemporâneo.
Nesse mesmo sentido, afirma Dworkin[6]:

Taxes are the principal mechanism through which government plays this redistributive role. It collects money in taxes at progressive rates so that the rich pay a higher percentage of their income or wealth than the poor, and it uses the Money it collects to finance a variety of programs that provide unemployment and retirement benefits, health care, aid to children in poverty, food supplements, subsidized housing, and other benefits.

É sob essa perspectiva que José Casalta Nabais[7] defende a ideia de que a solidariedade torna-se o alicerce do fenômeno tributário, o qual demanda a responsabilidade solidária dos cidadãos, enquanto integrantes de uma comunidade, para a contribuição da manutenção e desenvolvimento da sociedade.
A própria Constituição Federal brasileira estabelece, em seu artigo 3º, como objetivos fundamentais da República, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos, sem qualquer discriminação.
O tributo não existe (somente) devido ao caráter impositivo disposto na lei, mas reflete a pretensão coletiva de custeio dos gastos públicos, na medida da capacidade econômica de cada um. A própria acepção do termo contribuinte reflete o seu caráter contributivo para o financiamento do bem estar social de todos.
Não se olvida aqui o desconforto em pagar tributos decorrente de inúmeros problemas sociais e políticos, dentre os quais se destacam a nefasta corrupção que assombra a arrecadação de receita, a ineficiência dos serviços públicos e a excessiva e desigual distribuição da carga tributária. É indiscutível que a atual matriz tributária brasileira não reflete os ideais de justiça social previstos na Constituição Federal[8].
No entanto, as falhas cometidas pelo Estado não são suficientes para retirar do tributo a força e a importância que este desempenha na sociedade contemporânea, tampouco servem de justificativa para o inadimplemento das obrigações tributárias, sob pena de inviabilizar a própria convivência em sociedade. De fato, os prejuízos práticos obstariam os eventuais benefícios distributivos do tributo, e, por isso mesmo, são importantes e devem ser discutidos, mas só podem sê-lo tendo em vista a própria função da tributação. Não se pode desvalorizar o fenômeno tributário em decorrência das falhas na sua execução sem observar as garantias fundamentais que alicerçam os anseios sociais dessa exação.




[1] Cf. GASSEN, Valcir. Matriz tributária brasileira: uma perspectiva para pensar o Estado, a Constituição e a Tributação no Brasil In: GASSEN, Valcir (Org.). Equidade e Eficiência da Matriz Tributária Brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012, p. 34-38
[2] MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. O mito da propriedade: os impostos e a justiça. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 5
[3] BICALHO, Guilherme Pereira Dolabella. A construção do estado social brasileiro na transição da modernidade: a extrafiscalidade como instrumento de legitimação do estado social na perspectiva funcional do direito. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2013, p. 100
[4] Ibid., p. 177-186
[5] Ibid., p. 180
[6] DWORKIN, Ronald. Is democracy possible here?: principles for a new political debate. Princeton University Press: New Jersey, 2006, p. 92. Em tradução livre: “Os tributos são o principal mecanismo através do qual o governo desempenha este papel distributivo. Ele recolhe dinheiro através de impostos calculados por meio de alíquotas progressivas de modo a que os ricos paguem uma percentagem mais elevada dos seus rendimentos e de sua riqueza do que os pobres, e então utiliza o dinheiro que recolhe para financiar uma variedade de programas que proporcionem benefícios aos desempregados e aos aposentados, serviços de saúde, ajuda a crianças pobres, suplementos alimentares, habitação subsidiada, e outros benefícios”.
[7] NABAIS, José Casalta. Considerações sobre a sustentabilidade do Estado Fiscal. In SARAIVA FILHO; GUIMARÃES (Coords.). Sigilos bancário e fiscal: homenagem ao Jurista José Carlos Moreira Alves. Belo Horizonte: Fórum, 2015, p. 648
[8] Tendo em vista o objetivo aqui almejado e a limitação de espaço, a discussão sobre os problemas da matriz tributária brasileira será abordada em outro momento. Para maiores informações sobre o tema, mostra-se oportuno conferir os dados apresentados pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - CDES que demonstram os problemas existentes na atual matriz tributária brasileira, quais sejam: o ônus tributário é mal distribuído, gerando um sistema altamente regressivo; o retorno social é baixo em relação à carga tributária;  a estrutura tributária desincentiva as atividades produtivas, e, consequentemente, a geração de empregos e renda; há desequilíbrio na partilha federativa em relação às competências tributárias, responsabilidades e territorialidades; e inexiste cidadania tributária. Cf. CDES. Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional. Relatório de observação nº 2. Brasília, jul. 2011. Disponível em: <http://www.cdes.gov.br/documento/3057656/>. Acesso em 09/10/2016, p. 17-35.

Um comentário:

  1. O artigo por si escrito traz muita bagagem. Gostei muito porque depois da minha leitura, ajudou no meu trabalho da cadeira de infrações tributarias. Onde respondia um trabalho com o tema: A tributação como contribuição para a construção de uma sociedade solidaria no estado democrático e de direito.
    Mestrado em direito fiscal e aduaneiro, Moçambique.

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